É o crescimento que viabiliza a Previdência –e não o contrário, diz Kupfer

Jabutis e outros bichos na PEC 6/2019

Capitalização pode matar a repartição

Fosso entre aposentados ricos e pobres

O ministro da Economia, Paulo Guedes, falou sobre a reforma da Previdência no Poder360-ideias, jantar promovido pelo Poder360
Copyright Sérgio Lima/Poder360 - 5.fev.2019

O crescimento econômico de 1,1% alcançado em 2018 só não é decepcionante porque já era mais do que esperado. Agravado pelas revisões para baixo da expansão no 2º e no 3º trimestre do ano, o pífio avanço de 0,1% no último trimestre confirmou o estado de quase recessão em que se encontra a economia.

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Consequência imediata do avanço mínimo registrado, que mantém a economia ainda 5% abaixo do pico do primeiro trimestre de 2014, veio na forma de revisões para baixo das projeções para o crescimento em 2019. Dos 2,5% previstos no início do ano, as estimativas desceram para um intervalo entre 1,5% e 2%.

Trata-se da retomada mais lenta em 40 anos, chamando a atenção para a ilusão de jogar numa reforma previdenciária, ainda que “robusta”, todas as esperanças de recuperação da economia. A crença de que a reforma tem o poder de destravar a atividade econômica é menos poderosa do que a constatação de que sem um crescimento “robusto” o déficit da Previdência continuará colaborando para travar a economia.

Déficit previdenciário, não custa lembrar, é uma relação entre arrecadação e despesas. Como a redução de despesas tem limites, inclusive políticos, sem crescimento econômico que impulsione a receita, o risco de déficits será sempre real.

A projeção de uma redução de despesas, caso a reforma seja aprovada sem ser diluída no Congresso –de R$ 1 trilhão em 10 anos– é belo chute, pois não se sabe, por exemplo, quais valores foram definidos para o salário mínimo, ao longo desses 10 anos. Porém, mesmo que a projeção se prove correta, resta saber em que ritmo a economia avançará, nesses longos 10 anos, para assegurar de fato o cumprimento do teto de gastos e a estabilização da dívida pública.

Desconsiderando, para efeito de análise, a necessidade de algum crescimento econômico razoável que mantenha de pé qualquer sistema previdenciário, já dá para notar que, no geral, a reforma de Bolsonaro, aviada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, procurou ir muito além da Previdência.

Não é difícil perceber que o objetivo central da PEC 6/2019 é reduzir o tamanho do Estado. Para isso, o texto apresentado reúne um verdadeiro zoológico, com bodes, jabutis e outros bichos inseridos em diversos pontos da proposta.

O grande problema não é que esteja em jogo apenas uma redução do tamanho do Estado na sua atividade como empresário, o que seria perfeitamente aceitável e até desejável. O problema é que a proposta de encolhimento do Estado atinge em cheio atribuições de altíssima relevância social –e até mesmo civilizatória–, numa sociedade em que tanto a pobreza quanto a desigualdade de renda e oportunidades assumem proporções extremas.

Sabia-se que, entre as adiposidades incluídas no texto para efeito de negociação com o Congresso, a PEC viria com alguns bodes evidentes. Eles se configuraram, com maior visibilidade, na extensão para 70 anos do benefício para idosos e portadores de deficiência muito pobres e na ampliação da contribuição e do tempo de contribuição para trabalhadores rurais.

Também foi ficando claro que havia intenções no texto da reforma não anteriormente declaradas. Uma das principais é a de desconstitucionalizar regras previdenciárias, notadamente as que remetem aos reajustes dos benefícios.

A PEC enviada ao Congresso estabelece a retirada da obrigação de fazê-los acompanhar os aumentos concedidos aos trabalhadores na ativa e até mesmo de repor as perdas inflacionárias para benefícios acima de um salário mínimo.

Retirar a Previdência Social da Constituição tem a alegada vantagem de facilitar ajustes ao longo do tempo, além de ser medida em linha com o que se faz ao redor do mundo. Não há mesmo razão para engessar as regras previdenciárias, exceto talvez as cláusulas de proteção essencial da base mais vulnerável da pirâmide de renda.

Mas, se é assim, por que não aplicar a mesma lógica e desconstitucionalizar outras questões também engessadas pela Constituição sem razão de fundo para tanto? Por exemplo, o teto de gastos públicos.

É preciso apurar o olhar na análise da reforma Bolsonaro-Guedes para evitar deixar passar contrabandos em meio a alterações de fato coerentes com o objetivo declarado de adequar a dinâmica demográfica temporal e promover justiça social na distribuição de contribuições e benefícios.

O caso da eliminação da multa de 40% do FGTS para já aposentados que voltaram a trabalhar, demitidos sem justa causa, é um dos jabutis mais vistosos do texto. O que a questão tem a ver com Previdência e, ainda mais, com déficits previdenciários, é coisa que o governo ainda não explicou.

Mas o ponto mais grave inserido na reforma é outro. Diz respeito ao próprio fim da Previdência Social ou, pelo menos, do sistema vigente de repartição simples, aquele em que os trabalhadores ativos contribuem para o fundo que sustenta os benefícios pagos aos inativos.

Da forma como a PEC está redigida, a introdução de um regime previdenciário de capitalização, teoricamente apenas para os novos entrantes no mercado de trabalho, representa uma cunha com o propósito de inviabilizar a continuidade do sistema de repartição.

Em lugar de um fundo solidário, típico do sistema de repartição, no sistema de capitalização, as contas são individuais e a aposentadoria depende do valor das contribuições que cada trabalhador consegue alocar, em combinação com a contribuição do empregador, se houver, e com os rendimentos que o gestor do fundo individual é capaz de obter.

Não haveria risco se a capitalização mantivesse de fato o caráter complementar e verdadeiramente opcional mencionado no texto da reforma, no qual a questão é remetida para uma lei a ser regulamentada depois da aprovação da PEC. Mas, nas entrelinhas da proposta, essas características não se sustentam.

Primeiro, quem aderir ao sistema não poderá voltar atrás –seu caráter será obrigatório. Depois, como a contribuição patronal deverá ser muito provavelmente menor do que a devida na Previdência por repartição, a opção, é óbvio, será para inglês ver e o trabalhador não terá escolha. Da mesma forma que não teve –e não tem– escolha como “optante” pelo regime do FGTS.

Quem trocar de emprego, mesmo não sendo entrante no mercado de trabalho, teria de “optar” pela capitalização, do mesmo modo que, para ser contratado, precisa “optar” pelo FGTS. Com isso, a tendência de redução da base de arrecadação da Previdência por repartição, já presente, em função da crescente ampliação do grupo de trabalhadores “por conta própria” e da informalização generalizada do mercado de trabalho, se tornaria, com o tempo, na falta de crescimento econômico forte e sustentável, ainda mais inapelável.

Há sérias dúvidas sobre o financiamento da mudança do regime previdenciário. Ainda não foi esclarecido como serão bancadas as aposentadorias dos inativos existentes, no período de transição de um regime previdenciário para o outro, quando as contribuições para o sistema de repartição estiverem minguando em favor da capitalização.

Também não se sabe o custo do fundo, sustentado pelo Tesouro Nacional, para assegurar benefício mínimo de um salário mínimo, na capitalização prevista.

Se, em resumo, prevalecer o que está previsto para o regime de capitalização na reforma Bolsonaro-Guedes, a perspectiva é que se abra um fosso entre aposentados mais ricos e mais pobres. Só idosos mais ricos conseguirão formar poupança suficiente para a aposentadoria, restando aos mais pobres alguma renda mínima, bancada pelo governo, nos moldes do proposto na PEC para o BPC —uma renda mensal de meio salário mínimo entre os 60 e os 70 anos e de um salário mínimo só a partir daí.

autores
José Paulo Kupfer

José Paulo Kupfer

José Paulo Kupfer, 75 anos, é jornalista profissional há 51 anos. Escreve artigos de análise da economia desde 1999 e já foi colunista da "Gazeta Mercantil", "Estado de S. Paulo" e "O Globo". Idealizador do Caderno de Economia do "Estadão", lançado em 1989, foi eleito em 2015 “Jornalista Econômico do Ano”, em premiação do Conselho Regional de Economia/SP e da Ordem dos Economistas do Brasil. Também é um dos 10 “Mais Admirados Jornalistas de Economia", nas votações promovidas pelo site J&Cia. É graduado em economia pela Faculdade de Economia da USP. Escreve para o Poder360 às sextas-feiras.

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